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A Utilização da Teoria do Propósito Negocial pelo CARF e pelo Judiciário

Conceito e legalidade da Teoria do Propósito Negocial como limite para o Planejamento Tributário

Conforme apontado pela KPMG International (KPMG, 2021) em sua pesquisa das Corporate tax rates for 2011 – 2021 (Taxas de tributação coorporativas para 2011 – 2021), o Brasil possui, atualmente, o 4º maior percentual tributário, direto e indireto, aplicado às empresas e aos prestadores de serviços.

Dessa forma e tendo em vista a crise econômica estabelecida pela pandemia do SARS-CoV-2 (Covid-19), necessário se faz buscar as melhores alternativas que gerem economia de gastos às empresas, sendo certo que o Planejamento Tributário torna-se peça fundamental nesse sentido, possibilitando, através da realização de procedimentos jurídicos, econômicos, fiscais e operacionais, reduzir as despesas relativas ao pagamento de tributos, propiciando a continuidade das atividades empresárias mesmo em momentos de crise.

Ocorre que, pelo fato de os tributos representarem grande parte da arrecadação nacional, atos que possibilitem a sua redução vêm sendo controlados pelo Governo através da criação das chamadas “normas antielisivas” que permitem ao Fisco, dentre outras hipóteses, desconsiderar negócios jurídicos praticados, ainda que lícitos em seus procedimentos, sob o argumento de que carecem de proposito negocial ou extratributário.

À vista disso, diversos são os questionamentos dos contribuintes acerca da utilização, pelo Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF), da Teoria do Propósito Negocial, surgindo, assim, a seguinte problematização: Como vem sendo utilizada a Teoria do Propósito Negocial como fator determinante para a desconsideração de planejamentos tributários formalmente legais?

Desta forma, o presente estudo visa, através de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, analisar e entender a utilização da Teoria do Propósito Negocial como limite para a realização de Planejamentos Tributários, para propiciar aos contribuintes um melhor entendimento acerca da legalidade dos negócios jurídicos que visem, exclusivamente, a economia de tributos.

1 Do Conceito e da Legalidade da Teoria do Propósito Negocial

1.1 No que consiste a Teoria do Propósito Negocial?

A Teoria do Propósito Negocial teve início em 1935 com o emblemático Caso Gregory [1] (Gregory vs. Helvering), julgamento realizado pela Suprema Corte Americana, onde, pela primeira vez, foi decidida pela desconsideração de uma reorganização societária formalmente legal.

Neste caso, a Suprema Corte Americana deliberou por trazer à analise, além da forma, as causas dos negócios jurídicos realizados, chegando à conclusão, por diversos fatores, que eles possuíam como único objetivo a economia tributária, sem qualquer finalidade negocial e, portanto, deveriam ser desconsiderados.

Vejamos a Syllabus (ementa) do mencionado caso:

Nessas circunstâncias, os fatos falam por si só e são suscetíveis a apenas uma interpretação. Todo o negócio, embora conduzido de acordo com as normas de subdivisão (B), era, na verdade, uma forma elaborada e sinuosa disfarçada de reorganização societária e nada mais. A regra que exclui a consideração do motivo do Planejamento Tributário não é cabida à essa situação, porque a finalidade do negócio não reflete a real intenção da lei. Julgar de forma contrária seria o mesmo que exaltar a simulação em face da realidade e privar a disposição legal de seu real propósito. [2] (EUA, Suprema Corte Americana, Gregory vs Helvering, 293 U.S. 465, 1935, tradução e grifo nossos)

Desta forma, através do entendimento da Suprema Corte Americana, foi desenvolvida, doutrinariamente, a Teoria do Propósito Negocial, tendo como principal objetivo trazer aos julgados um olhar causalista para se analisar, também, a finalidade dos negócios jurídicos e se eles carecem de objetivos extratibutários.

Seguindo essa linha de pensamento, Godoi e Machado discorreram acerca da importância da Teoria do Propósito Negocial para a segurança jurídica de um ordenamento, sob o olhar de que o Direito não é criado como uma simples forma, mas, sim, como um meio de se alcançar uma finalidade. Vejamos:

Entendido como finalidade e não como motivo, o propósito negocial é tão necessário como o é a própria causa dos negócios jurídicos: o contrato de seguro supõe que alguém busca prevenir-se contra determinados riscos; o contrato de sociedade supõe que determinadas pessoas envidarão esforços conjuntos na busca de resultados econômicos etc. Ou seja, o pressuposto básico é o de que o direito não cria tais estruturas contratuais/negociais como simples formas ocas e vazias, mas como instrumentalizações para o atingimento de certas finalidades práticas. (GODOI; MACHADO, 2016, p.36).

Assim, pode-se definir a Teoria Propósito Negocial como um desdobramento do conceito amplo de Simulação, representando o liame entre a Elisão e a Elusão Fiscal e trazendo aos julgadores uma forma de se analisar a validade de um negócio jurídico através da finalidade do ato e não somente da legalidade de sua forma, ou seja, considerando “[…] a essência sobre a forma, para identificar a verdadeira natureza da operação.” (CORREIA; NASCIMENTO, 2011, p. 6).

1.2 A legalidade da Teoria do Propósito Negocial

Em que pese o desenvolvimento doutrinário acerca da Teoria do Propósito Negocial, a sua utilização ao ordenamento jurídico pátrio esbarra em aspectos formais.

Isto, pois a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 150, I [3] (CRFB/1988), estabelece que a exigência ou o aumento de tributo não poderá ser realizada sem lei que a previamente estabeleça.

Nesse sentido, a utilização, pelo Fisco, de interpretações não tipificadas foi amplamente criticada por Crepaldi.

O autor, em sua obra “Planejamento Tributário – Teoria e Prática”, defendeu a rigidez do sistema jurídico tributário e alegou que somente a lei pode declarar determinada situação como hipótese tributável. Vejamos:

A ordem tributária constitucional brasileira consagra, no art. 150, limitações declaradas ao poder estatal de tributar. O princípio da legalidade ali expresso, no qual se vê como contida a tipicidade cerrada, tal como acontece em matéria criminal, aponta que só – e estritamente só – o que a lei declara como hipótese de incidência permite a tributação. (CREPALDI, 2019, p. 114)

Outrossim, Godoi e Machado afirmaram que a legalidade tributária se mostra mais complexa que a simples necessidade de expressa determinação legal, devendo exaustiva, precisa, delimitada conceitualmente e não podendo ser analisada em conjunto com atos infralegais (GODOI; MACHADO, 2016, p. 36).

Desta forma, o legislador brasileiro, no intuito de positivar, tributariamente, a análise do caso concreto em razão de sua finalidade, em 2001, através da Lei Complementar 104/2001, incluiu no Código Tributário Nacional, dentre outras disposições, o parágrafo único do artigo 116 (CTN/1966), denominado como “norma geral antielusão”.

Vejamos o dispositivo:

Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966: Art. 116 – Parágrafo único: A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária (BRASIL, 1966).

Através dessa definição legal, buscou-se possibilitar ao julgador a atualização do próprio Código Tributário Nacional para desconsiderar negócios elusivos, sem precisar recorrer, ou restringir-se, aos conceitos de fraude à lei e abuso de direito, previstos ao artigo 166, VI e 187, ambos do Código Civil de 2002 (GODOI; MACHADO, 2016, p.43).

Entretanto, até o momento deste estudo, os procedimentos para aplicação da norma geral antielusão não foram inseridos ao ordenamento jurídico pátrio, motivo pelo qual se torna impossível – ou, no mínimo, questionável – a sua utilização, restando ao julgador pautar as decisões que envolvam o Propósito Negocial no entendimento jurisprudencial, doutrinário e interpretativo.

Por outro lado, trazendo uma visão Estatal à discussão, Miquerlam Cavalcante, Procurador da Fazenda Nacional, sustenta a legalidade da aplicação da Teoria do Propósito Negocial através de analogia de disposições cíveis e constitucionais (CAVALCANTE, 2011).

Para tanto, afirma que a Constituição Federal condiciona as transações comerciais aos princípios da função social e da isonomia e que, de forma infraconstitucional, a liberdade contratual se limita à boa-fé [4] e, novamente, à sua função social [5].

Assim, critica a prática deste tipo de planejamento tributário e argumenta no sentido de que, considerando que a economia de tributos representa um ganho de capital, operações que não tenham finalidade extratributária constituem enriquecimento ilícito. Vejamos:

A previsão do artigo 884 [6] do Código Civil igualmente autoriza o reconhecimento da exigência do propósito negocial em nosso direito.Com efeito, o artigo em destaque [sic] repúdia o enriquecimento sem causa. Ora, se o contrato social ou o estatuto social elenca o objeto social, ou seja, as atividades empresariais a que se propõe a sociedade, é naqueles instrumentos que se encontra a forma (ou causa) para a geração de riquezas.Como afirmamos acima, desconhecemos qualquer empresa que nomeie dentre seu objeto social “economizar tributos”. Assim, operações pautadas nesse único propósito fogem da normalidade empresarial listada em seu objeto social e, portanto, carecem de causa jurídica.Considerando que, sob o ponto de vista contábil, a redução de um custo (pagamento de tributos) representa um ganho, a conclusão não pode ser outra senão que a economia tributária auferida em operações que não apresentem fatores [sic] extra-tributários, constitui enriquecimento sem causa (CAVALCANTE, 2011).

Portanto, verifica-se que a discussão acerca da legalidade da Teoria do Propósito Negocial não é uniforme, concentrando-se em distintos entendimentos, onde, por um lado, analisa-se o ordenamento tributário com rigidez, sob o olhar do contribuinte, e, por outro lado, considera-se que a legalidade do Propósito Negocial está abarcada em conceitos genéricos e amplos espalhados em todo ordenamento jurídico, sob o olhar estatal.

Por fim, ressalta-se a existência de um terceiro entendimento acerca da legalidade da utilização da Teoria do Propósito Negocial, onde, em que pese a rigidez do sistema tributário nacional, o Propósito Negocial seria um desdobramento do conceito amplo de simulação, ou seja, uma forma de se analisar a validade de um negócio jurídico através da finalidade do ato e não somente da legalidade de sua forma, considerando, conforme entendimento de Godoi e Machado (2016, p.36), o Direito como uma forma complexa e um meio de se alcançar uma finalidade e não a simples sistemática legal.

2 Da Utilização da Teoria do Propósito Negocial como Forma de Desconsideração dos Negócios Jurídicos

Apresentados o conceito relativo à Teoria do Propósito Negocial e a controvérsia existente acerca da legalidade de sua aplicação, torna-se imprescindível verificar como essa Teoria vem sendo utilizado para fundamentar decisões administrativas e judiciais.

Para tanto, analisa-se neste capítulo os atuais entendimentos trazidos pelo CARF e pelos TRF’s em suas decisões.

2.1 A utilização da Teoria do Propósito Negocial pelo CARF

Em um estudo publicado no ano de 2020 por Tatiane Nascimento e Rogerio Correia, verificou-se os acórdãos publicados pelo CARF, no período de 2010 a 2018, que tinham por objeto a possível desconsideração de um negócio jurídico pela falta de um propósito negocial.

Através desse estudo, foi constatado que, no período indicado, o propósito negocial foi determinante para a decisão de 225 acórdãos, onde 69,78% dos Planejamento Tributários analisados tiveram o seu propósito negocial rejeitado, demonstrando que o CARF vem decidindo “[…] mediante a análise das operações como um todo, envolvendo os motivos, a forma e os resultados obtidos.” (CORREIA; NASCIMENTO, 2011, p. 11).

Outrossim, atualmente, a necessidade de motivação extratributária para a concretização de negócios jurídicos perpetua como entendimento majoritário das Câmaras Superiores do CARF.

Como exemplo, podemos mencionar o acórdão nº CRSF/9101-004.817 (BRASIL, 2020), de março de 2020, onde a corte entendeu que as operações realizadas sem qualquer propósito negocial, com motivação exclusivamente tributária, não produzem efeitos perante ao Fisco.

Vejamos a passagem da ementa deste julgado:

Não produzem efeitos perante o Fisco as operações realizadas sem qualquer propósito negocial, com o único intuito de reduzir a tributação incidente sobre a operação. Cessão, à empresa estrangeira relacionada, de ações cuja alienação já estava acertada, acompanhada do posterior aumento de capital da detentora original dos ativos com a utilização de parcela relevante dos recursos levantados com a venda, demonstram que a única motivação das operações adotadas pela contribuinte e por sua controladora estrangeira foi promover a artificial redução da tributação incidente sobre o ganho de capital relativo à venda das ações. […] (BRASIL, Recurso Especial do Procurador e do Contribuinte, Processo nº 16327.001725/2010-52, Acórdão CSRF/9101-004.817, 2020)

Ao mérito dessa decisão, a i. Relatora Viviane Vidal Wagner discorreu no sentido de que a legalidade dos atos societários não possui relevância na verificação da oponibilidade de seus efeitos perante o fisco e que uma série de ações realizadas com o único propósito de redução tributária configura planejamento tributário abusivo e, portanto, sujeito a desconsideração.

Em conseguinte, afirmou que a utilização da Teoria do Propósito Negocial não retira dos contribuintes a liberdade de se auto-organizarem, porém tal direito não pode ser ilimitado, sob pena de prejudicar aqueles que dependem, direta ou indiretamente, dos recursos arrecadados pelo Estado.

Assim, após indicar passagens do artigo redigido por Miquerlam Cavalcante, defendeu que a legalidade da aplicação da Teoria do Propósito Negocial está abarcada em conceitos genéricos e amplos espalhados em todo ordenamento jurídico, concluindo, em seu voto, que:

[…] não há nada de ilegal ou inconstitucional na exigência de que determinado Planejamento Tributário tenha propósito negocial diverso da simples economia tributária. Pelo contrário, esta exigência guarda perfeita harmonia com os princípios constitucionais da função social da propriedade e da isonomia e com os princípios legalmente exigidos dos contratos, de probidade, boa-fé e função social destes instrumentos.Mais do que isso, a existência de motivação extratributária no encadeamento de operações societárias que configura o Planejamento Tributário é garantia de correspondência entre a formalidade dos atos e a realidade dos fatos. Por esse motivo, a mera regularidade formal dos atos, não suportada pela realidade, é ineficaz para produzir efeitos prejudiciais ao Fisco e, por decorrência, à coletividade. (BRASIL, Recurso Especial do Procurador e do Contribuinte, Processo nº 16327.001725/2010-52, Acórdão CSRF/9101-004.817, 2020)

Portanto, reflete como entendimento da Turma que a falta de tipificação da Teoria do Propósito Negocial não é óbice para a aplicação de um conceito amplo de simulação, sendo essa falta suprida pela utilização dos conceitos genéricos e interpretativos trazidos pela Constituição Federal ( CRFB/1988) e pelo Código Civil (CC/2002), conforme entendimento trazido por Miquerlam Cavalcante.

Outrossim, semelhante foi o pensamento da corte ao acórdão de nº CSRF/9101­004.335 (BRASIL, 2019), proferido em 10/09/2019.

Neste julgado, a i. Redatora Edeli Pereira Bessa, concordou com a decisão recorrida no sentido de permitir a desconsideração dos negócios jurídicos analisados pela simples falta do propósito negocial, através da utilização de um conceito causalista de simulação.

Vejamos o trecho indicado pela Redatora:

Não se nota, portanto, a presença de motivos não predominantemente tributários congruentes entre si, ou, noutros dizeres, compatíveis com a finalidade pretendida com a realização do negócio jurídico.Dúvidas não há, portanto, quanto a motivação estritamente tributária da reorganização societária, considerada pela fiscalização como “abuso de direito”, afastado qualquer propósito negocial alegado. (BRASIL, Recurso Especial do Contribuinte, Processo nº 16561.720127/2015-18, Acórdão CSRF/9101­004.335, 2019)

Como ilustração, lista-se abaixo, dentre outras, decisões proferidas em 2021 e 2020 que se utilizaram da Teoria do Propósito Negocial como fundamento determinante para suas decisões:

  1. Recurso Voluntário. Processo nº 13047.720310/2013-82. Acórdão 2402-010.368. Relator Denny Medeiros da Silveira. Data de Julgamento: 01/09/2021. Data de Publicação: 14/10/2021.
  2. Recurso Voluntário. Processo nº 13047.720308/2013-11. Acórdão 2402-010.365. Relator Rafael Mazzer de Oliveira Ramos. Data de Julgamento: 01/09/2021. Data de Publicação: 14/10/2021.
  3. Recurso Especial do Procurador e do Contribuinte. Processo nº 16561.720182/2013-46. Acórdão 9101-004.637. Relatora Livia de Carli Germano. Data de Julgamento: 15/01/2020. Data de Publicação: 09/03/2020.
  4. Recurso Voluntário. Processo nº 10665.003361/2008-11. Acórdão 2402-008.110. Relator Luis Henrique Dias Lima. Data de Julgamento: 04/02/2020. Data de Publicação: 28/02/2020.

Como se não bastasse, este entendimento se desdobra em diversos outros julgados proferidos pelas Turmas do CARF, não restando dúvidas quanto a utilização dos conceitos formulados pela Teoria do Propósito Negocial para desconsiderar negócios jurídicos elaborados sem motivação extratributária, suprindo a falta de positivação deste conceito com a utilização de embasamentos doutrinários, jurisprudenciais e interpretativos.

2.2 A utilização da Teoria do Propósito Negocial pelos Tribunais Regionais Federais

A priori, cumpre destacar que, ao contrário do que se verifica nos julgados proferidos pelo CARF, são raras as decisões dos Tribunais Regionais Federais que tratam, diretamente, da utilização da Teoria do Propósito Negocial como forma de desconsideração de negócios jurídicos legais. Assim, analisaremos algumas das decisões já proferidas, no intuito de entender como vem sendo construída a jurisprudência nesses tribunais.

Ao acórdão que julgou o Agravo de Instrumento nº 5001394-68.2019.4.03.0000 (BRASIL, 2020), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região considerou como subjetiva e sem fundamentação legal a análise do CARF que desconsiderou um Planejamento Tributário com base na Teoria do Propósito Negocial.

A fundamentação utilizada pelos julgadores foi de que, para a configuração de uma fraude, vários outros fatores, além do propósito negocial, devem ser analisados e que, com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, o Estado não pode interferir na liberdade do contribuinte para realizar, legalmente, os negócios jurídicos que lhe sejam mais vantajosos.

Em síntese, o Desembargador Federal Antônio Carlos Cedenho não reconheceu a legitimidade para utilização, pelo fisco, do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, tornando impossível a desconsideração de um negócio jurídico com base em interpretações subjetivas.

Vejamos a passagem:

Na forma do parágrafo único do artigo 116 do CTN, “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.Trata-se de uma norma antielisiva que permite ao Fisco desconsiderar os aspectos formais de um negócio que visa ocultar o fato gerador de um tributo. Todavia, por não terem sido, até o momento, estabelecidos em lei ordinária os procedimentos que devem ser observados, o argumento de “falta de propósito negocial” utilizado aqui pelo Fisco não seria suficiente para desconsiderar os atos jurídicos praticados por se tratar de um juízo de valor subjetivo, conforme se depreende da decisão que concedeu a tutela provisória. (BRASIL, Agravo de Instrumento nº 500139468201940300 00 SP, 2020)

Tal posicionamento demonstra que, em contraste ao CARF, os Tribunais Regionais Federais não são pacíficos quanto a utilização do conceito amplo de simulação, considerando, também, a falta de legalidade do instituto e entendo que os negócios jurídicos não podem ser desconsiderados simplesmente pela falta de um propósito negocial.

Entretanto, em que pese o entendimento restritivo aplicado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região corroborou com o pensamento do CARF, utilizando-se do conceito amplo de simulação para aplicar a ideia de elusão fiscal ao caso concreto e desconsiderar o negócio jurídico realizado sem motivação extratributária.

Assim, ao acórdão da Apelação nª 5003296-69.2015.4.04.7113 (BRASIL, 2018), o Relator Desembargador Federal Andrei Pitten julga por analisar o negócio jurídico não somente em sua forma, mas também em sua causa.

Em seu julgado, o Relator vota por concordar com a decisão apelada, deixando de lado a mera legalidade dos atos e apontando a anormalidade das operações que destoaram da efetiva realidade societária, afirmando que os negócios realizados se caracterizam como elusão fiscal ou, nas palavras do Relator, como simulação.

Vejamos a ementa do acórdão proferido:

TRIBUTÁRIO. PLANEJAMENTO ABUSIVO. ELUSÃO FISCAL. OPERAÇÕES ANORMAIS E ARTIFICIAIS, DESTOANTES DA EFETIVA REALIDADE SOCIETÁRIA, PARA VIABILIZAR ECONOMIA DE TRIBUTOS NA ALIENAÇÃO SOCIETÁRIA. PARCELAMENTO. LEI Nº 11.941/2009. ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO. REDUÇÕES. ART. 7º DA REFERIDA LEI. POSSIBILIDADE. 1. A prática de operações anormais e artificiais, destoantes da efetiva realidade societária, para simplesmente viabilizar a redução da tributação da alienação societária, caracteriza-se como elusão fiscal, mais especificamente como simulação, que enseja o lançamento de ofício com fulcro no art. 149, VII, do CTN. 2. A Lei nº 11.941, de 27/05/2009, em seu artigo 7º, prevê a possibilidade de quitação à vista no curso do parcelamento (antecipação de todas as parcelas vincendas), observando o mínimo de 12 parcelas, aplicando os mesmos benefícios do que seria a quitação à vista quando da adesão ao programa. Ato regulamentar infralegal não pode inovar na ordem jurídica de modo a limitar o direito que a lei conferiu ao contribuinte em maior extensão. (BRASIL, Apelação nª 5003296-69.2015.4.04.7113 RS, 2018)

Outrossim, o entendimento trazido pelo acórdão da Apelação Cível nº 5017280-53.2015.4.04.7200 (BRASIL, 2016) corrobora com o julgado acima reproduzido.

Isto pois, o Relator Desembargador Federal Rômulo Pizzolatti também decidiu por julgar o caso concreto em sua totalidade, alegando que é inconcebível que uma pessoa jurídica tenha existência apenas formal, sendo necessário que ela tenha uma finalidade social concreta, que, conforme indicado por ele, seria a real atividade indicada em seu objeto social.

Vejamos a passagem:

Em linhas gerais, a personalidade jurídica nada mais é do que uma ficção criada para possibilitar a afetação de determinados bens dos sócios à exploração de um empreendimento, de tal maneira a preservar o seu patrimônio pessoal dos riscos do negócio. Assim sendo, é inconcebível que uma pessoa jurídica tenha o que se chama de existência apenas formal; porque ela não é um fim em si mesmo, a sua existência somente se concretiza com a efetiva persecução da finalidade social, que é a atividade (=empresa). Uma pessoa jurídica que não exerce nenhuma atividade e que foi criada apenas para que o seu “sócio” possa valer-se de sua roupagem para obter vantagem tributária indevida não possui existência autônoma; o seu patrimônio, assim como a sua personalidade, confundem-se com a personalidade e com o patrimônio do sócio. Em situações dessa natureza, dada a confusão patrimonial, é correto superar-se a pessoa jurídica interposta (não propriamente a sua personalidade jurídica), porque os rendimentos auferidos por ela são os próprios rendimentos do seu sócio e, diante dessa constatação, não se exige maiores formalidades da Receita Federal para que os atribua ao seu efetivo titular. (BRASIL, Apelação nª 5017280-53.2015.4.04.7200 SC, 2016)

Ou seja, verifica-se que, neste caso, assim como no CARF, foi utilizado, indiretamente, o entendimento de Miquerlam Cavalcante acerca da necessidade de as operações societárias refletirem a real função social da empresa.

Entretanto, diferentemente do raciocínio trazido por Cavalcante, o Relator indicou como base legal para este entendimento apenas o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN/1966), não indicando quaisquer motivos que justificassem o seu entendimento pela legalidade da aplicação do dispositivo.

Diante do exposto, ressalta-se que, pela falta de maiores decisões fundadas à Teoria do Propósito Negocial, não é possível indicar qual o entendimento majoritário dos Tribunais Regionais Federais, sendo certo que a jurisprudência acerca do assunto ainda vem sendo construída e desenvolvida através das decisões eventualmente proferidas.

3 Conclusão

Em um momento de crise e insegurança econômica, mostra-se necessário buscar, analisar e entender a utilização da Teoria do Propósito Negocial como limite para a realização de Planejamentos Tributários, no intuito de propiciar aos contribuintes um melhor entendimento acerca da legalidade dos atos que visem, exclusivamente, à economia de tributos.

Através dessa análise, percebe-se que, em que pese a controvérsia existente acerca da legalidade da aplicação da Teoria do Propósito Negocial, sua utilização tem sido fator determinante para as decisões proferidas pelo CARF para desconsiderar negócios jurídicos elaborados sem motivação extratributária, suprindo a falta de positivação deste conceito através de embasamentos doutrinários, jurisprudenciais e interpretativos, conforme entendimento exposto à obra de Miquerlam Chaves Cavalcante.

Por outro lado, aos Tribunais Regionais Federais, esse entendimento não demonstra a real opinião dos julgadores, porém, pela inexistência de maiores decisões fundadas à Teoria do Propósito Negocial, não é prudente concluir que exista entendimento majoritário em algum sentido.

Com isso, a hipótese de que o Propósito Negocial representa um limite para o Planejamento Tributário se confirma, por motivos de que, atualmente, o contribuinte encontra-se em meio à falta de direcionamento legal acerca dos limites para a realização de um Planejamento Tributário e, principalmente, sujeito à interpretações divergentes sobre a legalidade da utilização da Teoria do Propósito Negocial, realizando atos na expectativa de que não sejam desconsiderados pelo CARF e, se desconsiderados, que eventual decisão será reformada pelos Tribunais Federais.

Tal expectativa de sucesso representa grande fragilidade aos atos realizados, algo que, no Direito, deve ser evitado, sob pena de trazer a todo ordenamento jurídico uma insegurança indesejada, sendo necessário que, no pensamento de Godoi e Machado (2016, p.48), no mínimo, proceda-se com a definição dos conceitos, procedimentos e consequências da norma geral antielusão, informando em sua regulamentação, detalhadamente, quais os atos de planejamento tributário permitidos e quando será indispensável a presença de um propósito negocial em sua elaboração.

Por fim, recomenda-se o acompanhamento de novas decisões eventualmente proferidas pelos Tribunais Regionais Federais e, prioritariamente, analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2446 que, até o presente momento, não teve o seu julgamento finalizado pelo Supremo Tribunal Federal.

*O presente artigo é uma adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia), apresentado por Igor Montalvão Souza Lima à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Referências

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[1] No original: The Gregory Case

[2] No original: In these circumstances, the facts speak for themselves and are susceptible of but one interpretation. The whole undertaking, though ronducted according to the terms of subdivision (B), was in fact an elaborate and devious form of conveyance masquerading as a corporate reorganization, and nothing else. The rule which excludes from consideration the motive of tax avoidance is not pertinent to the situation, because the transaction upon its face lies outside the plain intent of the statute. To hold otherwise would be to exalt artifice above reality and to deprive the statutory provision in question of all serious purpose.

[3] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (BRASIL, 1988)

[4] Código Civil – Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. (BRASIL, 2002)

[5] Código Civil – Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (BRASIL, 2002)

[6] Código Civil – Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. (BRASIL, 2002)

Autor

Igor Montalvão Souza Lima
Igor Montalvão Souza Limahttps://www.msladvocacia.com.br
Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui especialização em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e em Direito Societário pela Escola Brasileira de Direito. Palestrante e autor de diversos artigos sobre temas jurídicos, contábeis e tributários.

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